Hidrogênio verde, combustível do futuro

Por Itaú BBA

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Quem acompanha, mesmo que de longe, o noticiário sobre transição energética, já deve ter notado um frisson em torno da corrida mundial pela supremacia no fornecimento do chamado hidrogênio verde (H2V) – com o Brasil bem posicionado para estar entre as lideranças.

A característica fundamental do H2V – e que faz dele tão atrativo – é que ele não emite gases causadores do efeito estufa nem na sua produção e nem no seu uso.

O papel principal do H2V é a descarbonização de setores industriais em que o abatimento das emissões de CO2 não é viável apenas com a eletricidade de fontes renováveis (HTA, na sigla em inglês).

A lista dos setores em que existe benefício no uso do hidrogênio verde (como fonte de energia e/ou como matéria prima), inclui fabricantes de aço, alumínio, amônia, cerâmica, cimento, metanol e vidro, todas intensivas em carbono.

O combustível também pode ter um papel em modalidades de transporte em que baterias elétricas são inviáveis por causa do peso, como em aviação; no transporte de carga por trem e caminhão em regiões remotas; em navios para transporte de carga e passageiros em percursos curtos; e para operações em comunidades isoladas, fora da rede elétrica.

Mesmo com esses usos específicos, o governo americano estima que o hidrogênio é aplicável a 25% das emissões globais de CO2 decorrentes de consumo de energia.

Um pouco de ciência

Não existem fontes naturais relevantes de hidrogênio em sua forma isolada na Terra. Na prática, ele precisa ser gerado a partir de outras fontes energéticas e, por isso, é considerado tecnicamente um “vetor energético” e não uma fonte propriamente dita de energia.

O hidrogênio verde é aquele produzido com energias renováveis, por meio de eletrólise da água ou outros processos limpos. Para produzi-lo, uma corrente elétrica passa pela molécula de água — por meio dos chamados eletrolisadores — e separa os átomos de hidrogênio e oxigênio.

Na hora de utilizá-lo, células combustíveis fazem o processo inverso: o hidrogênio é misturado com oxigênio, produzindo eletricidade e vapor d’água como único resíduo, sem emissão de carbono.

Hoje, esse combustível do futuro ainda custa caro e é produzido em pequenas quantidades. O custo de produção hoje está acima de US$ 5 por quilo de hidrogênio. O Departamento de Energia dos EUA considera possível baixar o custo para US$ 1 por quilo até 2031.

Mas com desafios tecnológicos, necessidade massiva de investimentos e projetos que só irão maturar no longo prazo, é preciso começar a se posicionar hoje para ter vantagem na corrida lá adiante.

A Agência Internacional de Energias Renováveis (Irena) já afirmou em relatório que o hidrogênio verde tem o potencial de redefinir o mapa do poder global.

Hoje, há projetos de produção de hidrogênio “de baixo carbono” (explicamos o conceito mais abaixo) em 87 países; a Agência Internacional de Energia (IEA) listou 41 governos com estratégias anunciadas para hidrogênio, e a Bloomberg constatou em abril que 28 desses governos já colocaram dinheiro na mesa.

A força potencial do Brasil

Os dois insumos do H2V – água e energias renováveis – são abundantes no Brasil, o que torna o país um dos candidatos a liderar esse novo segmento da indústria da energia.

Num estudo recente, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) contabilizou 21 projetos de hidrogênio de baixo carbono anunciados no país, num total de R$ 188 bilhões em investimentos. Os projetos se distribuem por 11 Estados.

Existem duas dimensões para se planejar uma cadeia de hidrogênio verde no país: o uso para descarbonizar a economia local e a exportação para outros países.

No mercado interno, o H2V indica um caminho para descarbonizar diversas operações industriais.

Um exemplo é dado pela White Martins, primeira empresa a produzir hidrogênio verde no Brasil em escala industrial e com certificação independente, em 2022. Depois de estabelecer essa operação em Pernambuco, a companhia vai começar a produzir hidrogênio verde em Jacareí, em São Paulo, no segundo semestre de 2025. Uma cliente garantida é a fabricante de vidros Cebrace, que tem meta de redução de emissões. O gás vai ser entregue por duto. A White Martins espera atender clientes também no Rio de Janeiro e em Minas Gerais.

No mercado global, existem oportunidades específicas na exportação do próprio hidrogênio, para uso no destino – a Alemanha se apresenta até agora como a maior parceira potencial. Mas é preciso avaliar em quais setores e aplicações o transporte do hidrogênio para uso no destino tem sentido ambiental e econômico.

Outra estratégia é usar o hidrogênio verde localmente para fabricar produtos descarbonizados, como aço, e exportar esses produtos de baixo carbono – como pretende o governo brasileiro.

Existem ao menos três hubs de hidrogênio verde em formação no Brasil, concentrando produtores e indústrias consumidoras em torno de portos.

Dos 21 projetos mapeados pela CNI, a maior concentração está no hub de Pecém, no Ceará, com sete iniciativas. Outros possíveis hubs ficariam no Complexo Industrial de Suape, em Pernambuco, e no Complexo do Porto do Açu, no Rio de Janeiro. O projeto mais recente é o de Cubatão, em São Paulo, onde existem 45 atores num raio de 6,5 km.

Regulação e a vantagem competitiva brasileira

O setor vem ganhando mais segurança jurídica no Brasil, com duas novidades recentes: o marco regulatório do hidrogênio, sancionado em agosto (Lei nº 14.948), que trata de regulação, fiscalização e autorizações; e o Projeto de Lei 3.027/2024, aprovado no Senado em 4 de setembro, que institui o Programa de Desenvolvimento do Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono (PHBC). O PHBC autoriza (mas não obriga) o governo a conceder até R$ 18,3 bilhões em crédito fiscal, de 2028 a 2032, para a produção comercial de hidrogênio verde ou quase verde (detalhes dessa paleta de cores abaixo).

Pelo Projeto de Lei apreciado no Senado, o hidrogênio é “de baixa emissão de carbono”. O texto não seguiu a prática comum no mercado, de atribuir cores ao hidrogênio de acordo com o processo de produção. Apenas como exemplos de uma lista organizada pela EPE (Empresa de Pesquisa Energética), há as variedades preto, marrom e cinza, com fabricação a partir de combustíveis fósseis (carvão ou gás natural) e sem a captura e armazenagem do carbono emitido no processo industrial; a azul, a partir de gás natural e com captura, armazenamento e uso do carbono emitido; e a rosa, a partir de energia nuclear, entre outras.

Nesta edição, estamos nos concentrando na variedade verde, produzida a partir de energia renovável. Essa rota de produção é a única que apresenta vantagens inquestionáveis na redução de emissões de gases de efeito estufa.

Mas em vez de usar a nomenclatura “verde”, o PL adotou o hidrogênio “de baixa emissão de carbono”, definido assim quando a produção de 1 kg do gás emite até 7 kg de CO2e ao longo do processo produtivo inteiro. Esse limite bem específico abre as portas ao uso do etanol na fabricação do hidrogênio.

Segundo seus defensores, essa rota de produção aproveitaria a infraestrutura já existente no Brasil para transporte e armazenagem de etanol, e a conversão em hidrogênio ocorreria nos pontos de abastecimento, por um processo chamado reforma a vapor. O argumento tem apelo, porque o etanol já chega ao país inteiro, enquanto a logística do hidrogênio é mais complexa e exige equipamentos próprios.

Julio Meneghini, diretor do Centro de Pesquisa para Inovação em Gases de Efeito Estufa (RCGI), disse à Agência Fapesp que a estratégia de usar o etanol seria a mais barata para o país e poderia ser organizada para absorver carbono ao longo da cadeia, um resultado ainda melhor do que com uso de energia solar.

Como aproveitar

A metade do valor de insumos e equipamentos necessários para uma fábrica de hidrogênio verde pode ficar nas mãos da indústria nacional, de acordo com um estudo feito com base no Complexo de Pecém, no Ceará, pela GIZ (agência alemã de cooperação internacional), pela Universidade Federal do Ceará e outras entidades. A demanda incluiria produtos de metalurgia, insumos químicos, materiais elétricos e serviços.

O consultor Valter Pieracciani, que aconselha um grupo de empresas interessadas em constituir um hub de hidrogênio verde em Cubatão, São Paulo (e listou 45 potenciais participantes do hub num raio de 6,5 km), identifica oportunidades para diversos segmentos, todas aplicáveis no Brasil.

  • Fabricantes de equipamentos e prestadores de serviços em energia renovável. A produção de hidrogênio verde, para exportação ou uso doméstico, exigiria um fluxo constante de energia limpa, que nunca poderia ser substituída por energia fóssil. O segmento também pode se tornar consumidor de etanol;
  • Tecnologia de eletrólise, para produzir hidrogênio a partir de água e eletricidade. Há uma corrida global para fazer eletrolisadores mais eficientes e baratos;
  • Engenharia de materiais e química, para atender aos fabricantes com materiais específicos. Um único componente, a membrana dos eletrolisadores, vem incentivando pesquisa avançada com versões em paládio, silício e polímeros, entre outras opções;
  • Automação, controle e serviços de logística para garantir eficiência e segurança na operação com o novo combustível. O hidrogênio exige protocolos de segurança próprios, diferentes dos usados para combustíveis fósseis;
  • Infraestrutura e construção, para adaptar e criar o sistema necessário. Pode-se ter uma ideia do trabalho necessário a partir de uma iniciativa da União Europeia, que definiu este ano uma linha de financiamento de 6,9 bilhões de euros para dutos, terminais e obras nos portos, tudo para adaptação ao hidrogênio. Na UE há 32 grandes empresas na linha de frente, conduzindo os projetos;
  • Pesquisa e desenvolvimento, para fazer avançar novas tecnologias na produção e uso do hidrogênio.

O desenvolvimento da cadeia do hidrogênio movimenta vários outros serviços, como consultorias energéticas e ambientais, para identificar os melhores processos; manutenção e serviços técnicos, para atender à infraestrutura de produção e logística; treinamento e capacitação, para formar os profissionais da cadeia do hidrogênio verde; investimento e financiamento, porque a nova cadeia é intensiva em capital e trabalha com longo prazo; e seguros, para criar produtos financeiros adequados aos riscos do hidrogênio verde.

Corrida com obstáculos – e busca de soluções

No caminho dessa ambição toda existem questões a resolver. O hidrogênio vai longe, mas precisa das condições certas. Cada barreira a ultrapassar é também uma oportunidade de negócio.

  • Energia disponível - Até hoje, o hidrogênio é fabricado principalmente como matéria prima industrial a partir de fontes fósseis, como gás natural. A China é a maior produtora. Ainda não há disponibilidade de energia limpa suficiente no mundo para a produção do H2V em escala. A previsão de capacidade global de energia limpa dedicada à fabricação de hidrogênio para o período 2022-2028 caiu 35% desde 2022, no cálculo da Agência Internacional de Energia. Ponto para o Brasil, que tem energia solar e eólica abundantes e condições de expandir a produção.
  • Equipamentos - A febre do hidrogênio aumentou em mais de 50% este ano o custo para fabricar e instalar eletrolisadores – mas deve haver queda de preço no futuro próximo, com excesso de oferta e de fabricantes, segundo análises da BloombergNEF.
  • Uso - No processo de usar eletricidade para fazer hidrogênio e depois usar esse mesmo hidrogênio para produzir eletricidade, perde-se pelo menos 50% da energia inicial. Por isso, sua aplicação tem de ser bem planejada.
  • Transporte e armazenagem - O hidrogênio é mais facilmente inflamável que outros combustíveis, escapa mais facilmente e é inodoro, por isso requer um protocolo de segurança próprio. A infraestrutura desenhada para gás natural – tanques, dutos, válvulas, sensores – pode ser usada, mas exige adaptações para receber o novo gás.

O mundo precisa do hidrogênio verde e de baixa emissão, e das avenidas que ele abre para a descarbonização e os negócios da economia limpa.