A revolução dos biocombustíveis: quem plantar vai colher

Por Itaú BBA

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Se você acompanhou nos últimos meses as discussões sobre a Lei do Combustível do Futuro, até sua aprovação e sanção em outubro, teve contato com um número impressionante, repetido muitas e muitas vezes: R$ 260 bilhões. Esse seria o valor de investimentos “destravados”, no cálculo do governo federal, graças ao estímulo e segurança jurídica oferecidos pela nova regulação. Mesmo que a conta não seja tão precisa assim, o impacto da lei dos biocombustíveis na economia do Brasil é imenso.

Caso você não tenha acompanhado o tema, aqui vai um breve resumo do que a lei traz de novo: o texto eleva a faixa de adição do etanol à gasolina dos atuais 18% a 27,5% para 22% a 35%; e a adição de biodiesel ao diesel comum dos 14% vigentes em março de 2024 para até 20% em 2030 e até 25% a partir de 2031.

Na prática, também determina um aumento gradual no uso de outros dois biocombustíveis – o combustível sustentável de aviação (ou SAF, na sigla em inglês) e o biometano, além de criar a possibilidade do uso do diesel verde no Brasil.

A novidade deve fortalecer e aumentar um ecossistema que já inclui centenas de empresas, pelo menos 68 usinas de biodiesel (segundo o site especializado BiodieselBR), 436 usinas de etanol (segundo o site especializado Nova Cana), e mais de 2,2 milhões de colaboradores.

Crescem também as oportunidades para fornecedores de bens e serviços. Entre as boas projeções para o fim de 2024, a Esalq-USP prevê que a cadeia da soja e do biodiesel chegue a 21% do PIB do agronegócio e 4,5% do PIB nacional. A CNA (Confederação Nacional da Agricultura) estima que a exportação de etanol cresça 3% este ano. O segmento de açúcar e etanol corresponde a 2% do PIB nacional, segundo a Unica, associação do setor.

“Com mais gente entrando no mercado, fica mitigado o receio do usuário de a produção cair e haver picos de preço”, diz Nelson Perez, presidente da Comissão Nacional de Cana de Açúcar na CNA. O executivo prevê um ambiente de maior segurança, por exemplo, para empresas que precisem criar ou modernizar frotas de veículos.

Mesmo com uma cadeia de valor já bem estabelecida, Perez identifica oportunidades à frente em segmentos variados, como a produção de etanol a partir de outras matérias-primas que não a cana, a exemplo de milho, agave, sorgo e trigo; a adaptação e manutenção de motores de máquinas agrícolas, caminhões e outros veículos para uso exclusivo de biogás, biodiesel ou etanol; e a produção de hidrogênio a partir do etanol, mais adiante.

Empresas de vários setores vêm usando a tecnologia para abrir frentes de negócios, ganhar eficiência ou descarbonizar suas operações. Estes são só alguns exemplos:

  • A Vale vai testar, ao longo de 2025 e 2026, uma mistura de etanol (até 70%) e diesel em caminhões fora de estrada – veículos com capacidade de 230 a 290 toneladas, usados nas áreas de mineração;
  • A John Deere está testando, no Brasil e nos EUA, motores de alto desempenho para maquinário agrícola movidos a etanol. A meta da empresa é levar motores de baixa emissão ao mercado até 2026;
  • A Be8, primeira empresa brasileira a exportar biodiesel, vai fabricar etanol a partir de cereais numa nova fábrica a ser construída em Passo Fundo (RS). A operação deve começar em 2026;
  • A Acelen vai criar um centro tecnológico agrícola em Montes Claros (MG) para pesquisa com macaúba, planta nativa e potencial matéria prima para SAF. O projeto recebeu o primeiro financiamento do BNDES para SAF;
  • A Raízen inaugurou a maior usina de etanol de segunda geração (E2G) do mundo, em maio, em Guariba (SP). O E2G ou etanol celulósico é feito de resíduos vegetais e aumenta em até 50% a produtividade dos canaviais.

Essa evolução é importante para a sociedade inteira, por diminuir as emissões dos gases que contribuem com a crise climática. E é ótima para o agronegócio brasileiro, que avança em sua descarbonização e agrega valor a seus produtos. A EPE (Empresa de Pesquisa Energética, órgão do governo federal) calcula que etanol e biodiesel tenham evitado juntos emissões de 84 milhões de toneladas de CO2 no Brasil em 2023, um total 18,5% maior que o evitado no ano anterior.

O resultado vem sendo construído pelo Brasil há quase 50 anos, desde que o Proálcool foi lançado. Mas a febre com esses produtos não acontece só por aqui. Considere o seguinte:

  • Na China, o governo apresentou em maio deste ano uma iniciativa para aumentar o consumo interno de biodiesel, que no país é feito principalmente de óleo de cozinha reciclado. O esforço começa com um plano-piloto aplicado em 22 cidades, incluindo Pequim e Cantão, voltado principalmente para frotas de ônibus e veículos comerciais. A China exporta e consome etanol feito a partir de milho (a produção e o consumo interno devem crescer 17% só este ano, numa estimativa do governo americano); já o biodiesel é vendido ao exterior, mas não tinha lugar no mercado interno chinês – até agora.
  • Na União Europeia, começa a valer em janeiro de 2025 a regulação FuelEU Maritime, para descarbonizar o transporte marítimo de passageiros e de carga que passa pelos portos do bloco econômico (mesmo que os navios tenham bandeira de fora do bloco). A intensidade de carbono dos combustíveis usados por navios de 5 mil toneladas ou mais – que correspondem a 90% das emissões no setor – precisa cair 2% em 2025, 6% até 2030 e 80% até 2050. A forma segura de avançar rapidamente, pelo menos nos primeiros anos, é com biocombustíveis (principalmente o biodiesel, e com potencial para uso do etanol). A Bunker Holding, maior trader de combustível de navios do mundo, estima que a nova lei vai mais que dobrar a demanda por biocombustível para navios na Europa.
  • Nos Estados Unidos, o consumo de SAF foi multiplicado por cinco entre 2021 e 2023, segundo a Agência de Proteção Ambiental (EPA). A produção de SAF no país precisaria ser multiplicada por 250 até 2030, segundo o plano adotado pelo governo Joe Biden em 2021 para descarbonizar as viagens aéreas. O presidente eleito Donald Trump, que vai assumir o cargo em 20 de janeiro, pode até mudar o rumo do projeto ou encerrá-lo. Mas vai precisar lidar com o aumento de produção já ocorrido, de 5 milhões de galões por ano em 2021 para 50 milhões só no primeiro semestre de 2024.

Esses são só exemplos nas maiores economias do mundo. Há preocupações parecidas na gestão de trens no Japão, no incentivo a combustíveis líquidos de baixo carbono na Austrália, no aumento do uso do etanol na Índia – todas iniciativas adotadas nos últimos meses.

A demanda por biocombustíveis cresce em todas as regiões do mundo, segundo o relatório Renewables 2024, da Agência Internacional de Energia (IEA).

Brasil: potência do setor

Assim como ocorre no Brasil, essa evolução dá mais segurança às empresas produtoras e consumidoras de biocombustíveis. Esses produtos são relativamente baratos e fáceis de adotar, em comparação com opções como hidrogênio, eletrificação ou combustíveis sintetizados a partir de energia limpa (e-fuels). Mais de 80 países já têm políticas para biocombustíveis líquidos, segundo a IEA. No cenário Net Zero global da Agência para 2050, a produção de combustíveis renováveis – categoria composta principalmente por biocombustíveis – precisaria mais que dobrar entre 2023 e 2030, e depois dobrar de novo até 2050.

Como potência do setor, o Brasil tem muito a ganhar com a expansão global do uso de biocombustíveis. O país é o segundo maior produtor de etanol (atrás dos EUA e seguido por União Europeia, China e Canadá) e de biodiesel (também atrás dos EUA, praticamente empatado com a Indonésia e seguido por Alemanha e China).

É também grande exportador de etanol. No primeiro semestre, Coreia do Sul, EUA e Índia foram os maiores compradores do produto brasileiro (em 2023, Países Baixos, Filipinas e Nigéria também apareciam no topo dessa lista).

A exportação de biodiesel é menor, mas vem crescendo. Países Baixos e Suíça são os principais compradores neste momento. A tensão geopolítica abre novos espaços: em 2023, a China foi a maior fornecedora de biocombustíveis para a União Europeia, atendendo a 36% das importações do bloco (o Brasil ficou em terceiro lugar, com 12%). Mas as vendas da China para a UE vêm caindo desde o ano passado e em agosto despencaram de vez, quando o bloco impôs tarifas de até 36% sobre os produtos chineses, sob acusação de dumping.

Importadores de combustíveis em geral vão enfrentar um cenário global mais complexo pelos próximos anos – comprar o quê de quem, sem favorecer adversários, guerras, ditadores, desmatamento, insegurança alimentar? Isso vai ser um ponto a favor do Brasil, se o país puder mostrar claramente uma produção descarbonizadora e regenerativa.